Thursday, October 05, 2006

O Fetichismo em Murderball

Talvez muitos leram sinopses simplistas sobre esse documentário americano sobre o rúgbi para tetraplégicos e tenham se desinteressado pelo filme. Eu não estranharia. O Guia da Folha trouxe a seguinte manchete para a crítica ao filme: “Tetraplégicos estrelam documentário esportivo”. Fora isso, o subtítulo de lançamento no Brasil (Paixão e Glória) não seja muito atraente. Confesso que eu também não me interessaria por este filme caso não soubesse de sua carreira internacional de sucesso e por minha curiosidade irritante por filmes. O fato é que Murderball é muito mais que um documentário esportivo e muito mais que um filme sobre cadeirantes.

O que acho mais interessante sobre este documentário é sua relação com o fetichismo próprio do cinema e como ele se difere da abordagem masoquista de alguns documentários, principalmente daqueles produzidos no País do Futebol. Apesar de se tratar de os tetraplégicos serem o motivo do filme, o filme não os usa, não os torna objeto de fetiche, não nos coloca numa situação de dó ou de nojo, não quer chocar, não quer usar a diferença para exaltar o virtuosismo artístico do documentário, erro freqüente em realizadores cuja motivação é mais de olhar e não de cinematografar. Estes pontos são a diferença que tornam Murderball um filme ao mesmo tempo sensível, duro, divertido, pesado, engraçado, doloroso, mas essencialmente emocionante, no sentido mais amplo e menos clichê que ele pode ter. Em se tratando de um filme de personagens, ele toca o espectador, faz-nos rir, nos dá força de vontade, divertimento e muita esperança. A construção das três personagens em situações diferentes na vida como tetraplégico dá ao filme um vigor como poucas vezes vi, mérito da brilhante montagem que dá ritmo interessante. Não nos sentimos entediados nunca e o filme parece ter menos de uma hora. Os diretores não querem aparecer com a retórica documental; preferem que suas personagens digam por si só, deixam que elas ajam e falem o que entenderem.

Murderball não usa o fetichismo como estética, evita retratar seus protagonistas como vítimas ou pessoas diferentes ou esquisitas que precisam ser reveladas para que nós (os seres “normais”) vejamos como somos superiores e fiquemos com dó de nossos vizinhos tetraplégicos. O filme é um tapa na cara de todos nós espectadores que vamos ao cinema esperando chorar pela tragédia pessoal que eventualmente passaria na tela. Porém, Murderball nos faz chorar pela nossa própria incapacidade, pois os jogadores da seleção americana de rúgbi para tetraplégicos são vencedores.

Enquanto o Evaldo Mocarzel vai até a Amazônia para perguntar futilidades às parteiras esquecidas pela sociedade “civilizada” no meio da floresta com o olhar fetichista masoquista do homem branco que chega ao novo mundo levando o progresso, os realizadores de Murderball fazem um fetichismo de identificação, mostrando que a visão deste mundo civilizado pode ser reducionista ou preconceituosa. O fetichismo em Murderball é interessante de ser estudado, pois causa identificação do público com os sentimentos mais comuns que personagens como Mark Zupan e Joseph Soares podem sentir quando são vencedores e nós, voyeures civilizados, somos inferiorizados com lágrimas nos olhos, pois caímos na nossa própria arma da superioridade.

Ao final de Murderball, não dá para não querer chorar, simplesmente porque o filme é muito bom e mexe com os nossos sentimentos, como poucos filmes de ficção conseguem fazer, menos ainda quando se trata de cinema brasileiro. Não é exagero dizer que Murderball é o melhor documentário lançado este ano.

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